O uso de celulares, smartphones, tablets, computadores, videogames é cada vez mais crescente. Muitos pais e mães acabam recorrendo aos eletrônicos como passatempo para os filhos. O médico neurologista infantil do Martagão Luan Guanais alerta que o excesso de telas é considerado perigoso pela Sociedade Brasileira de Pediatria e pode acarretar problemas de saúde. Como alternativa, ele sugere a criação de regras saudáveis que devem ser obedecidas e a supervisão por parte dos responsáveis. Confira entrevista abaixo:
Por que o uso excessivo de telas é perigoso?
O excesso de telas é considerado perigoso. É um alerta que já vem sendo sinalizado pela Sociedade Brasileira de Pediatria e por outros órgãos, principalmente para crianças menores de dois anos. O aviso tem sido feito por causa de alguns problemas médicos. Dentre eles, a dependência digital e o uso problemático dessas mídias interativas, problemas de saúde mental como a irritabilidade, ansiedade, depressão, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, transtornos de sono, de alimentação como o sobrepeso, obesidade, anorexia. O uso demasiado de telas tem levado a um excesso de sedentarismo, falta da prática de atividade física, alguns transtornos de imagem corporal e autoestima, entre outros comprometimentos à saúde. Por isso que existe esse alerta para o excesso de telas. É realmente perigoso para a saúde das crianças.
Quando falamos em “telas”, a quais dispositivos estamos nos referindo?
Estamos falando dos dispositivos do dia-a-dia. A televisão, o computador, notebook, tablets, celulares, smartphones, videogames. São dispositivos que têm uma tela e fazem com que as crianças e adolescentes fiquem presos àquela interação restrita a uma tela virtual.
Como exatamente esse excesso influencia no desenvolvimento das crianças? Há danos ao cérebro?
O uso de telas realmente influencia no desenvolvimento da criança. Não necessariamente vai causar danos ao cérebro. Sabemos que os primeiros mil dias de vida da criança é um período muito importante para o desenvolvimento cerebral e mental. Assim como os primeiros anos de vida, nos quais a idade escolar e toda a fase da adolescência são importantes para essa maturação cerebral. São diferentes estruturas e regiões cerebrais que eles amadurecem e não só a nutrição, a alimentação oral, mas também todos os circuitos sensoriais como o toque, os estímulos do tato, degustativos, visuais, luz, som, olfato. Eles modelam toda aquela arquitetura e a função dos ciclos neurobiológicos para a produção do que chamamos de neurotransmissores e conexões sinápticas. Sabemos que o desenvolvimento precoce da linguagem e das habilidades de comunicação são fundamentais para o desenvolvimento das habilidades cognitivas e sociais. Sabemos também que o atraso do neurodesenvolvimento, principalmente da fala e da linguagem, é frequente em crianças e bebês que ficam passivamente expostos às telas, sobretudo por períodos prolongados. Não temos um tempo exato do que seriam esses tempos prolongados, mas sabemos que o estabelecimento das rotinas é fundamental para a produção de hormônios necessários para o crescimento harmonioso do cérebro, para um desenvolvimento mais complexo.
E quais são as consequências?
Os transtornos de sono estão cada vez mais frequentes e associados a esses transtornos mentais precoces e isso leva realmente a um comprometimento. É ainda importante falar que o tempo de maturação do córtex pré-frontal, que é uma estrutura do cérebro, é responsável pelas funções cognitivas e executivas do controle dos impulsos, do controle do julgamento, resolução de problemas, atenção, inibição, memória, tomada de decisões. Então, isso é assíncrono em relação ao sistema límbico, que é outra estrutura do cérebro e que é estimulado por emoções. Esse descompasso entre o córtex pré-frontal e o sistema límbico é intensificado por volta dos 10, 12 anos de idade. Se temos um comprometimento disso, então acaba levando a vários comprometimentos de aspectos como atenção, inibição, memória. Daí os comportamentos típicos dos adolescentes não só a questão da curiosidade, da impulsividade, mas quando arriscam seus próprios limites inclusive durante a participação nos jogos de videogame, desafios virtuais, selfs em locais extremos, inseguros. O uso da internet e de eletrônicos por troca de pontos, por likes são recebidos por esses comportamentos nos jogos e nas redes perpassam por mecanismos de recompensas e da produção de neurotransmissor chamado dopamina. Muitos comportamentos se tornam impulsivos e automotivos, aliviando episódios recentes de tédio, estresse ou depressão. Algo que começou como uma distração na tela passa a ter uma solução rápida para desaparecerem sentimentos perturbadores e emoções. Então, isso acaba levando a alterações importantes do desenvolvimento cerebral dessas crianças e ao comprometimento desses sistemas que mencionei.
O senhor quer dizer que a criança usa a tela excessivamente para fugir de sentimentos que ela não sabe lidar como tédio, estresse ou até mesmo depressão?
Em algumas crianças, isso pode acontecer. Estamos vivenciando uma geração em que os próprios pais proporcionam a seus filhos a utilização de eletrônicos nos períodos ociosos ou, até mesmo, em momentos de “birras” na tentativa de acalmar. Já tem estudos evidenciando que o uso frequente de dispositivos digitais para distrair de comportamentos desagradáveis e perturbadores, como acessos de raiva, foi associado a mais desregulação emocional em crianças – principalmente meninos e crianças que já estavam lutando com a regulação emocional.
Esse uso excessivo pode impactar na fase adulta? De que forma?
Sim. Sabemos que as experiências tanto positivas e construtivas quanto as negativas ou traumáticas que ocorrem na primeira infância, na idade escolar e na fase da adolescência, como aprendizagem da agressividade, intolerância que é manifestada nos jogos e redes sociais, nas telas que essas crianças e adolescentes acabam assistindo, que permeiam como modelo referencial, se não forem realmente melhor reguladas e diagnosticadas, elas terão impactos duradouros nos comportamentos e no estilo de vida dessa criança e desse adolescente no futuro, incluindo as questões de saúde como falei anteriormente. Saúde mental, física, depressão, ansiedade, transtornos psiquiátrico. A questão da obesidade. A saúde física fica realmente comprometida com o passar dos anos.
Hoje em dia, celular virou quase um vício. Muitos pais dão aparelhos aos filhos até mesmo como forma de “acalmá-los” ou “distraí-los”. Como controlar as crianças com relação ao uso de telas?
Hoje em dia, o celular virou quase que um vício. Virou uma maneira dos pais terem uma forma de acalmar os filhos, distraí-los em alguns momentos, mas precisamos realmente criar regras para controlar essa relação das crianças e dos adolescentes com as telas. E como é que podemos conseguir fazer isso? Evitar exposição de crianças menores de dois anos às telas, nem passivamente. Isso é muito importante. Limitar o tempo de tela de acordo com as idades, sempre com supervisão dos pais, cuidadores, responsáveis. Os pais precisam estar cientes disso e orientar também as pessoas, os cuidadores que tomam conta dessas crianças, no dia a dia. Não permitir que fiquem isolados nos quartos com televisão, computador, tablet, celular, smartphones ou com uso de webcams, por exemplo. Estimular o uso em locais comuns da casa, na sala, junto a outro adulto. A supervisão dos pais é super importante para isso. Para todas as idades, nada de telas durante as refeições. Desconectar sempre uma ou duas horas antes de dormir porque isso ajuda realmente na qualidade do sono. Oferecer alternativas para atividades esportivas, recreativas. Exercício ao ar livre, contato direto com a natureza, sempre com supervisão do responsável. Isso faz com que realmente se reduza a exposição dessa criança às telas. Criar regras saudáveis para o uso de equipamentos e aplicativos digitais, além das regras de segurança. Por exemplo, senhas e filtros apropriados para toda a família. Sendo assim, os pais podem conseguir limitar para qual faixa etária cada dispositivo é usado, ou um aplicativo, ou o tipo de conteúdo que vai ser exposto, incluindo momentos de desconexão e mais convivência com a família. Os pais conseguem programar isso, dando limites a essa criança ou adolescente do tempo adequado de telas para exposição.
A pandemia ajudou a aumentar o tempo de uso de telas?
Realmente, a pandemia contribuiu muito para aumentar o tempo de telas usadas por crianças e adolescentes. Diante dela, sabemos que o uso do digital, dos eletrônicos ofereceu inúmeras alternativas de tecnologia ao alcance de todo mundo. Com o isolamento social, o uso de tecnologias como computadores, celulares, tablets se intensificou de uma maneira absurda. Tanto para o trabalho como para o lazer em casa. As crianças, durante a pandemia, acabaram tendo que fazer trabalhos de escola diante de um computador. Isso acabou levando a essas crianças e adolescentes a ter uma intensificação desse tipo de exposição consequentemente. As crianças de idade mais precoce tem tido acesso a esses equipamentos: telefones, celulares, smartphones, notebooks, além de computadores que são usados pelos pais, principalmente em casa.E os pais, como estão sobrecarregados, levando muito trabalho para casa, por exemplo, acabaram por admitir essas práticas exageradas que certamente trarão prejuízos para o desenvolvimento físico e psicológico dessas crianças.
Existe um tempo ideal por dia para o uso? Qual?
Sim. As limitações e o equilíbrio são muito importantes para as crianças. Vão ajudar a adquirir qualidade de sono, brincar adequadamente e que tenha tempo também para a família. A Organização Mundial de Saúde aconselha que crianças não sejam expostas a nenhum tipo de tela até pelo menos dois anos de idade, por causa do desenvolvimento cerebral. É uma idade crítica, quando é preciso fazer com que a criança tenha estímulos de linguagem, comunicação e interação. Acima disso, varia com a faixa etária. Entre dois e cinco anos, a OMS recomenda que deve limitar a uma hora por dia, sempre com supervisão. Entre seis e dez anos, deve limitar a cerca de uma a duas horas por dia e, nas idades entre 11 e 18 anos, manter uma exposição por volta de duas a três horas por dia. Lembrando sempre que toda e qualquer exposição a telas tem que ter uma supervisão dos pais para que sejam vistos o tipo de conteúdo, o tempo de tela, se está acontecendo algo importante e que deve ser feita essa intervenção o mais precoce possível.
Com relação ao uso de telas antes de dormir, o que isto pode causar ao sono?
Deve ser evitado. Já temos uma associação muito grande desse uso de tela à noite com transtornos de sono. Sabemos que, para todas as idades, devemos evitar todo e qualquer tipo de tela tanto nas refeições quanto duas horas antes de dormir. A partir das 18h, a exposição a esses eletrônicos deve ser evitada. O brilho das telas, devido a uma faixa de onda de luz azul presente na maioria delas, contribui para o bloqueio da melatonina, que é o hormônio produzido para induzir o sono. Isso pode contribuir para que cada vez mais ocorra dificuldade para dormir e manter uma boa qualidade de sono, principalmente no que chamamos de sono profundo. Esse uso provoca uma desregulação, levando realmente a um aumento de pesadelo e outros tipos de transtornos de sono. Sabemos que, ao acordar, o aumento da sonolência diurna acarreta alguns comprometimentos como problemas de memória, de concentração durante o aprendizado dessa criança ou adolescente na escola ou na faculdade, no caso dos adultos, por exemplo. Isso leva a uma redução do rendimento escolar e a uma associação com sintomas de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. A exposição a telas à noite leva não somente à dificuldade de dormir como também pode causar comprometimentos durante o dia.
Muito se fala em tempo de exposição, mas há riscos também com relação ao que essa criança está assistindo na tela? Refiro-me ao tipo de conteúdo.
O tipo de conteúdo é algo importante para se estar atento porque podem ter algum tipo de teor de violência, abuso, exploração sexual, nudez, pornografia. São fatores realmente inadequados e danosos ao desenvolvimento cerebral e mental das crianças e dos adolescentes. É dever dos pais estarem atentos a isso. Por essa razão, sempre frisamos em relação à vigilância desses pais e cuidadores. É realmente importante diagnosticar e avaliar adequadamente o tipo de conteúdo dessas telas. Precisamos intervir precocemente para que consigamos evitar sérios danos como transtornos físicos, mentais e comportamentais.
Quais alternativas são indicadas para evitar esses riscos?
Precisamos estar atentos aos conteúdos. É super importante criar regras saudáveis para o uso, tipo de eletrônicos utilizados e aplicativos. Há regras de segurança como senhas e filtros apropriados para toda a família. Hoje, já há inúmeros aplicativos que é possível instalar e que permitem monitorar tempo de acesso, tipo de conteúdo, o que permite fazer a vigilância mais de perto. E devemos incluir momentos de desconexão e de mais convivência da família. Temos que estar atentos porque há inúmeros riscos como encontros que são marcados online. Devemos sempre conversar com crianças e adolescentes dos riscos desse tipo de contato e saber sempre dos nossos filhos com quem estão andando e o que estão fazendo nesses eletrônicos, com quem estão jogando, sobre os conteúdos transmitidos nesses jogos, compartilhamento de webcam. É de responsabilidade dos pais e cuidadores estarem sempre atentos e vigiando.
Quando o uso de telas pode ser algo positivo e saudável para as crianças?
O uso não traz só pontos negativos, mas podem ter pontos positivos e saudáveis para as crianças quando é feito de forma adequada. Precisamos sempre frisar a necessidade de ter regras e que as crianças e adolescentes obedeçam em relação aos conteúdos. Jogos, filmes e uso de outros aplicativos precisam estar sempre de acordo com a faixa etária e verificados pelos pais, previamente, se estão corretos. E o tempo funcional para trabalhos de escola, fazer pesquisas, tarefas são também muito importante para que tragam pontos positivos nessa exposição.